Criação de comunidades sustentáveis na cidade. Como começar?

Quando ouvimos falar em comunidades sustentáveis pensamos logo em casas energeticamente auto-suficientes, pensamos num nicho de pessoas que produz os seus próprios alimentos, que cria os seus sistemas sanitários, os seus meios de sobrevivência, contrariando a lógica da grande escala, independentes do mercado global. A ideia está certa. As comunidades sustentáveis envolvem estes pontos e muitos mais, não fossem, pela sua simplicidade, sistemas altamente complexos. Mas quando pensamos na construção de comunidades sustentáveis em meios urbanos, em cidades grandes, ultra populadas, a perspetiva pode ter que sofrer algumas adaptações.
Nos sítios onde há ruas que não acabam, prédios a perder de vista, um comércio que nos faz comprar aquilo que se produz a milhares e milhares de quilómetros de distância, o processo começa na mudança de princípios. A criação de comunidades sustentáveis em meios urbanos depende da mudança de valores por que, tacitamente, nos regemos e que tão poucas vezes questionamos. Solidariedade e curiosidade são condições-chave. Só assim conseguimos conhecer quem vive na porta ao lado da nossa, só assim queremos contribuir para um comércio justo. Só assim queremos preservar a via pública, os espaços comunitários que tantas vezes nos esquecemos que também são nossos — e que ainda mais vezes vemos serem mal tratados. Refletimos sobre estes temas em seguida, em quatro pontos-chave.
O individualismo tem de dar lugar à relação com o outro.
As comunidades sustentáveis nascem a partir da relação entre as pessoas. Parece uma ideia muito simples, mas pense na dinâmica que existe entre vizinhos nos espaços citadinos. Exato, estamos todos nas nossas gavetinhas, absolutamente alheios a quem está do outro lado da parede que é dos dois. Agora pense na forma como se compra. Em vez de se ir à mercearia ou ao mercado, onde estão os produtores locais, uma grande maioria prefere ir para as filas das grandes superfícies em que ninguém fala, ninguém se conhece, carregando produtos que viajaram milhares de quilómetros para chegarem até si e que escondem uma pegada ecológica devastadora para o planeta — sem esquecer os danos para a saúde.
As cidades estão desenhadas para que vivamos isolados. É contra esta tendência que temos de lutar, implementando a lógica de valores de uma comunidade sustentável. Com a pandemia provocada pela COVID-19 vimos alguns destes aspetos do individualismo mudarem. Apurou-se o sentimento de solidariedade e, assim, começámos a conhecer os nossos vizinhos, a procurar estar disponível para ajudar e a fazer compras para aqueles que correm riscos ao saírem à rua. Começámos também a apoiar mais o nosso comércio local e a conhecer quem são as pessoas que gerem negócios próprios à nossa volta. Com ou sem Coronavírus, este é um dos princípios mais basilares das comunidades sustentáveis: relacionarmo-nos com o outro, conhecermos quem nos rodeia e ajudarmo-nos mutuamente. Esta é, aliás, a mais pura aceção do termo “comunidade”.
Nas comunidades sustentáveis criamos uma rede de abastecimento local.
Uma comunidade sustentável é-o por se basear numa relação entre pessoas e não na lógica do interesse económico. Esta ideia é fundamental para refletirmos sobre quem nos abastece – queremos conhecer a história dos nossos fornecedores, queremos saber de onde vem aquele alimento que vamos consumir, por que locais passou até chegar até nós.
Ainda há um longo caminho a percorrer, mas isto já vem acontecendo. A entrega de cabazes de hortícolas em casa é uma tendência que tem vindo a crescer e que espelha este movimento que nos aproxima. A AMAP – Associação pela Manutenção da Agricultura de Proximidade – é outro exemplo perfeito desta lógica de comunidade e de ligação com o outro: põe os produtores em contacto direto com os consumidores, com pontos de recolha de cabazes espalhados por todo o País.
Esta mudança de comportamento tem efeitos do ponto de vista da sustentabilidade social, económica e ambiental. Vamos optar pelo comércio local, ajudar o agricultor nacional. Vamos alimentar-nos de produtos que crescem a dada altura do ano, em determinada parte do País — alimentos que são verdadeiros no sentido em que não foram danificados pelos químicos utilizados na produção em massa. Deixamos de depender de um sistema global que vai buscar alimentos que viajam milhares de quilómetros até chegarem ao nosso prato, que enriquecem grandes grupos económicos e que podem até ser lesivos à nossa saúde, àsociedade e ao planeta.
O bem-estar e a partilha das comunidades sustentáveis na cidade.
Outro ponto nas comunidades sustentáveis é a questão do bem-estar. Como é que a cidade se organiza? Em que medida é que ela nos apoia para que possamos levar uma vida menos acelerada e que não nos obrigue a aceder ao individualismo e alienação em relação ao que está à nossa volta?
Uma arquitetura urbana que nos garanta a proximidade dos serviços e dos espaços de lazer será muito valiosa para uma comunidade sustentável. Se tivermos uma mercearia ao lado de casa, escusamos de pegar no carro para nos abastecermos. Se tivermos um espaço verde junto da nossa residência, é aí que iremos quando quisermos descansar. Se tivermos uma creche a poucos quarteirões, podemos ir deixar os miúdos a pé ou de bicicleta. Se o teletrabalho se mantiver uma realidade, escusamos de atravessar a cidade até chegar ao escritório, deixando de contribuir para o caos do trânsito e das emissões de CO2 para a atmosfera. Além disso, ganhamos tempo, ganhamos qualidade de vida. Uma horta comunitária passa, por exemplo, a ser uma realidade exequível, porque toda a gente se conhece e todos podem revezar-se para garantir os devidos cuidados.
Todos estes aspetos contribuem para que se estabeleça uma verdadeira relação entre as pessoas, entre as pessoas e os sítios e entre todos os elementos que compõem uma comunidade. Abre-se lugar à preservação, à manutenção daquilo que é um espaço partilhado — que, no fundo, é a via pública. Não desvalorizemos a força dos nossos hábitos diários. É neles que está o poder da mudança e o poder de influenciar as decisões que vêm de cima.
A quebra da lógica individualista abre a caixa para a sustentabilidade.
Já falámos na cadeia de abastecimento local e na valorização daquilo que são a via pública e os espaços partilhados. Quando este paradigma se enraíza, abre-se espaço para muitos outros aspetos que permitem criar uma comunidade sustentável na cidade, cada vez mais sofisticada. Os países nórdicos são um exemplo perfeito de sociedades que vivem com estes princípios de que temos vindo a desenvolver. Na Dinamarca, por exemplo, há exemplos de uma partilha de espaços entre idosos e jovens que fomentam a relação inter-geracional, que põem todos em contacto, que valoriza, que não isola nem maltrata. Este é um exemplo de sustentabilidade social, mas podemos ainda falar de exemplos ligados ao ambiente. Neste mesmo país existem também muitos prédios com espaços comuns, como, por exemplo, lavandarias ou até cozinhas que permitem que os moradores se relacionem, que participem na vida uns dos outros e que não exijam demasiado ao planeta.
Os painéis fotovoltaicos, que fornecem energia a todos os moradores, também são uma realidade comum do norte da Europa, sendo que em Portugal já começa a ser possível apostar neste formato de cooperativa energética como é o exemplo da Coopernico – uma cooperativa de energia, focada na implementação de um modelo “energético renovável, justo e responsável que contribui para um futuro social, ambiental e energeticamente sustentável”, que se dispõe a instalar sistemas fotovoltaicos em empresas, escolas ou até prédios residenciais, fazendo com que toda a comunidade que partilha aquele espaço possa sair beneficiada.
As comunidades sustentáveis na cidade são possíveis e dependem de nós. Falem com os vossos vizinhos, conheçam as pessoas que trabalham no comércio local, apoiem aquele restaurante a que vão todas as semanas. Preservem os vossos espaços verdes, preservem as ruas que percorrem todos os dias. Não se isolem. Dêem-se a quem está à vossa volta e permitam que os outros retribuam da mesma forma.
